Remédio

Hoje eu fui à farmácia, minha esposa não estava se sentindo muito bem. Na volta, esbarrei com um homem, era um vendedor ambulante. Ele empurrava um carro de mão amontoado de redes. Tendo passado por mim ele gritou bem alto: 

“Rede!!Remédio pra sono!!”

As pessoas ao redor riram, mas eu demorei um pouco pra entender, confesso. Quando finalmente captei o significado da propaganda eu também ri. De fato, a criatividade e a sabedoria popular são artefatos de valor inestimável.

As palavras daquele homem, de quem sequer lembro o rosto, me acompanharam em todo o meu caminho de volta para casa. Ele me fez lembrar algo muito importante e especial que quero compartilhar contigo.

Antes, porém, devo confessar dois pecados que, no fim das contas, são um só: a inveja. Ainda muito cedo, em minha infância, conforme eu fui tomando consciência do mundo, da realidade e de mim mesmo, eu percebi que a vida era irremediavelmente constituída por sofrimento. 

Aparentemente, por esse motivo passei a invejar os animais. Ficava imaginando como seria se, na verdade, eu tivesse nascido um cachorro. Como eu invejava aqueles cãezinhos sonolentos à sombra da mesa de seus donos completamente alheios aos problemas discutidos acima de sua cabeça. Anos depois, vim a descobrir que esse tipo de inveja, quando alimentada, pode se tornar um ideal de si primitivo na mente dos adultos, levando homens como Robin Hardy e Anthony Shaffer, a escreverem filmes como “The Wicker Man”(1973). Veja o que o Lord Summerisle diz no seguinte trecho:

"Eu acho que eu poderia voltar a viver com os animais. Eles são tão tranquilos e autossuficientes. Eles não deitam no escuro e ficam choramingando por causa dos seus pecados. Eles não me enojam com seu dever para com Deus.Nenhum deles se ajoelha diante de outro ou de um da mesma espécie que viveu a milhares de anos atrás. Nenhum deles é respeitável ou infeliz em toda a terra" (tradução livre)¹.

Cena de "The Wicker Man" (1973)


Cedo larguei de mão essa bobagem, porém em contrapartida, ainda menino, eu passei a invejar os recém-nascidos. Eu ficava um bom tempo lhes observando em seus berços com a barriguinha cheia de leite e a mente completamente vazia de pensamentos do tipo: “Será se aquela garota me acha bonito?”, ou “E se meu pai perder o emprego hoje?”. Nada disso ocupa a mente de um bebê, eles têm uma paz invejável, até mesmo para crianças mais velhas como eu na época. Mas de onde vem a paz dos bebês?

Assim como o sono, a paz não é algo que depende apenas de “quem eu sou” ou de “como eu estou”, mas de “onde eu estou”. Você já reparou como nos últimos anos os especialistas têm enfatizado a importância das condições ambientais para o favorecimento ou prejuízo da qualidade do sono? O lugar onde estamos tem um impacto poderosíssimo sobre nosso estado interno, seja ele fisiológico, psicológico, ou ambos. Devo, no entanto, lembrar que um lugar é algo que vai muito além do espaço físico. A fenomenologia nos ajuda a entender como experimentamos os espaços de uma maneira que ultrapassa em muito o aspecto meramente material. 

Quer um bom exemplo? Um lar não é uma casa, é bem mais do que a coisa física, um lar é uma estrutura relacional. Há crianças que cresceram em mansões, mas nunca puderam saber o que é pertencer a um lar. Por outro lado, não é raro ouvir adultos relatando com admiração como puderam, na infância, sobreviver a situações tão desafiadoras, pobres, estressantes, perigosas ou de privação extrema sem, no entanto, perderem o encanto da vida. “A vida era difícil”, eles dizem, “mas nós éramos felizes”.  Elas não tinham boas casas, mas tinham um lar.

Há quem queira atribuir tal felicidade à ingenuidade da infância. Pode ser que isso seja verdade, mas é preciso considerar que a criança só se entrega ou se permite à ingenuidade acerca de coisas que estão para além do seu campo de visão quando elas entendem que não precisam saber de tais coisas. 

À criança basta saber que seus pais sabem. Isso não as torna mais ingênuas, mas lhes dá a desobrigação de saber de tudo. Ela descansa porque confia. A fé, portanto, não advém da ingenuidade, mas lhe antecede assegurando ao que crê que nem tudo é preciso saber. Há coisas, sobretudo aquelas fora do meu campo de visão, que basta ao Pai saber. 

Deixo para meu Pai a tarefa de saber (de tudo), pois afinal, eu sou apenas uma criança, mesmo sabendo (de tudo), o que poderia eu fazer? Quanto menos uma criança pode confiar em seus pais, menos segura ela é, e quanto menos segura ela é, mais ela aposta na consciência como remédio, como forma de se proteger. Ela quer se livrar da ingenuidade porque acredita que na ingenuidade reside o perigo, mas ela não desconfia que o excesso de consciência continua sendo insuficiente diante do mundo. 

Quanto mais consciência temos, mais experimentamos o sofrimento, isso quem nos ensinou foi o homem mais sábio que já existiu. Exacerbar a consciência do mundo "é correr atrás do vento. Afinal, quanto maior o saber, maior o sofrimento; e quanto maior o entendimento maior o desgosto.” (Eclesiastes 1.17-18).

A mera consciência do mundo, de mim e da realidade não são suficientes para me trazer paz, na verdade, o exagero da consciência pode me trazer um sofrimento desnecessário.  Estabelecer a consciência como condição última para a obtenção da paz é a melhor maneira de tornar tal coisa inalcançável.  

Por isso, a paz não é um bem interno, adquirido pela mente através de uma exacerbação da consciência. Quanto mais temos consciência, menos nós dormimos. Não existe paz interior. A paz não é algo que o espírito descobre dentro de si, mas um lugar no qual o espírito se descobre.

A resposta está na propaganda daquele vendedor ambulante: “Rede!!Remédio pra sono”. Geralmente, quando pensamos em um remédio, pensamos em um comprimido. Mas a rede não é um comprimido a ser ingerido, ela é um lugar. O remédio é um lugar.

Em toda a Sagrada Escritura, até onde pude ver, nós não encontramos um momento em que a paz é algo substancial ou inerente ao indivíduo, essa é uma invenção moderna. Na Bíblia, a paz do indivíduo é sempre referenciada em Deus, isto é, um lugar (Alguém) distinto dele mesmo, o que faz todo sentido. Eis aqui alguns exemplos:

O estado de paz é uma consequência de onde o indivíduo habita.

“Em paz também me deitarei e dormirei, porque só tu, Senhor, me fazes habitar em segurança”.

Salmos 4:8


A paz é uma proteção para aquele que está firme em um propósito maior do que ele mesmo.

“Tu, Senhor, guardarás em perfeita paz aquele cujo propósito está firme, porque em Ti confia”.

Isaías 26:3


A paz não é conquistada com a superação ou a solução de todos os problemas e circunstâncias ao redor. Ela é estabelecida a despeito de todas essas coisas porque é oriunda de Alguém que já venceu todas as coisas da vida.

"Eu disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo".

João 16:33


Apesar de nutrir o desejo pelo conhecimento e pelo entendimento, a paz não depende em última instância do entendimento. A paz não está na mente ou no coração, é o contrário. 

"E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus."

 Filipenses 4:7

Não existe "paz interior". A paz não é algo que você produz ou que nasce dentro de si, mas é um certo lugar no qual você está. É por isso que os bebês dormem em paz, é daí que vem a paz dos bebês, o lugar no qual eles estão. Que lugar? O colo de Alguém maior, mais sábio e que lhes ama. A criança não dorme em paz por causa de quem ela é, mas por causa de com Quem ela está; não é por causa de algo dentro dela, mas por causa do dentro de onde ela está.

Onde você está?


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¹ "I think I could turn and live with animals. They are so placid and self-contained. They do not lie awake in the dark and weep for their sins. They do not make me sick discussing their duty to God. Not one of them kneels to another or to his own kind that lived thousands of years ago. Not one of them is respectable or unhappy, all over the earth" - Lord Summerisle, "The Wicker Man”(1973).




Comentários

  1. Quantas verdades nesse texto.....amei

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  2. Eu nunca tinha visto nada por este olhar, diferente e interessantíssimo... Um grande aprendizado, obrigado por compartilhar.

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Minha foto
Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.