O Critério da Fome


Nós, seres humanos, fazemos muitas coisas, cujas motivações nós não entendemos muito bem. Cada um de nós, por exemplo, já teve a oportunidade de olhar para trás e se perguntar: 

"Por que eu suportei isso por tanto tempo?"

Ou ainda, 

"Meu Deus! Como eu não pude enxergar?"

Bem, existem inúmeros fatores que determinam nossa percepção do mundo e inclusive de nós mesmos. Na concretude da percepção visual, se você tem miopia, certamente terá dificuldade para enxergar objetos que estão relativamente distantes no seu campo de visão. Se tem hipermetropia, terá problemas para enxergar aquilo que está perto dos seus olhos. Tanto a hipermetropia quanto a miopia são fatores que determinam sua visão das coisas e até de você mesmo. De igual modo, se você é uma pessoa medrosa tenderá a ver as coisas de uma forma mais ameaçadora, até mesmo o que é inofensivo. Mas se você é o tipo de gente despreocupada, provavelmente irá negligenciar perigos iminentes. 

De modo resumido, o que quero dizer é que, o modo como você se vê e o modo como você vê o mundo acaba condicionando quem você é. "Os olhos são a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso; se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas." (Mateus 6.22-23). Inversamente, quem você é (ou acredita ser) condiciona sua percepção de você mesmo e sua percepção do mundo. É como um ciclo que opera por um mecanismo de retroalimentação. Isso acontece em nosso próprio organismo para manter o que chamam de homeostase, mas este já é um assunto que você deve conversar com um fisiologista. 

Para você entender melhor, pense na seguinte situação. Uma garota se sente seriamente insatisfeita com seu corpo. Ela acha que suas mãos muito magras, que seu quadril é estreito e que seu rosto é muito comprido. Por todas estas coisas ela se vê uma pessoa feia. Mas e se invertêssemos a ordem das coisas? E se pensássemos que, justamente, por crer ser uma pessoa feia é que ela passa a achar que suas mãos são muito magras, que seu quadril é estreito e que seu rosto é muito comprido? 

É praticamente impossível dissociar as duas coisas e, por isso, uma vai reforçando a outra. Todavia é possível dizer quando esse ciclo começa. Ninguém nasce se achando feio ou bonito, obviamente. Quando chegamos ao mundo nós nos vemos primeiramente pelos olhos dos outros. 

O que faz dos outros um inferno para Sartre em "Entre quatro paredes" (“Huis Clos”, 1944), é a carência perceptiva da consciência humana.  Dependemos desde o começo da vida do olhar do outro para sabermos quem nós somos. O problema surge quando começam a surgir descompassos entre quem nós realmente somos e quem acreditamos que devemos ser segundo o olhar dos outros. As pessoas fazem coisas inimagináveis para coincidirem com aquilo que esperam delas. Elas também fazem coisas inimagináveis consigo mesmas e com outras pessoas caso não consigam alcançar aquilo que esperam delas e, nem é preciso dizer muito sobre o quanto isso pode ser perigoso e maléfico. 

Os estudiosos e pensadores, dizem desde a antiguidade, que o ser humano é um animal social, político etc. Porém, muito mais do que ser um animal social, o ser humano tem, em sua natureza, a necessidade de ser aceito. Você pode objetar e dizer que encontramos essa característica também em outro animais, sobretudo aqueles que vivem em bando. Mas você não ouve falar por aí sobre um macaco que, tendo sofrido, durante anos, bullying por causa de suas grandes orelhas, adoeceu profundamente e resolveu isolar-se, mas depois de um tempo planejou-se friamente e, com uma pedra pontiaguda decidiu matar todos os outros macacos, indiscriminadamente, e por fim arremessou-se de um despenhadeiro. Tudo isso por terem lhe rejeitado. 

Ninguém gosta de ser rejeitado, mas não precisamos pensar apenas em situações tão trágicas. Nosso cotidiano é repleto de coisas que fazemos para evitarmos a rejeição, para sermos amados, para recebermos carinho, reconhecimento, elogios, respeito, cuidado, proteção, sexo etc. Aqui encontramos algumas respostas para as perguntas iniciais. 

"Por que eu suportei essa relação por tanto tempo?" -Porque a pessoa com quem você se relacionava, apesar de mentir pra você com frequência, apesar de te proibir de ser você mesmo, de tentar sufocar constantemente seus sonhos, satisfazia seu único critério de vida: necessidade de proteção. Toda a vulnerabilidade á qual você foi exposta na infância foi aplacada pelo seu "parceiro"... agora você esta segura, protegida. Ele faz questão de te colocar pra baixo, mas você está protegida. Ele te humilha na frente dos seus amigos e familiares, mas você está protegida. Este 1% por cento de proteção pesa mais do que os outros 99% de desrespeito.

"Meu Deus! Como eu não enxerguei que meu amigo estava apenas me usando?" -Porque seu "amigo", sabe o quanto você é alguém que gosta de se sentir importante e popular, mas como é tímido e, francamente covarde, só consegue interagir com pessoas influentes ou mesmo com uma garota se estiver acompanhado dele (que é alguém desinibido). Ele lhe pede dinheiro emprestado constantemente e nunca lhe pagou um centavo, mas ele te faz importante e popular. Ele só almoça às suas custas, mas ele te faz importante e popular. Ele fala pra os seus amigos em comum que você é um fracote, mas em público ele te faz importante e popular. Você negocia sua honra.

O problema em si não é apenas o amigo interesseiro ou o marido tirano, mas o motivo que faz você tolerá-los: isto é, a sua necessidade. Na verdade, no fundo, o amigo interesseiro e o marido tirano, a princípio não se apresentam como problemas, mas como soluções. Depois de um tempo se torna impossível viver sem eles, porque acreditamos que não encontraremos proteção, reconhecimento, carinho, cuidado, sexo ou seja lá o que for, fora dessas relações.

Isso acontece porque nossas necessidades solicitam soluções e, com frequência, as soluções adquirem um grau teleológico na vida do indivíduo, isto é, lhe conferem um fim, o sentido engessado de sua própria vida sem o qual ele perde a razão de existir. É a isto que chamo de critério da fome. Quando a necessidade (fome) de algo se torna nosso único critério de vida, nós nos envolvemos em sérias enrascadas.

O critério da fome é que quanto mais temos fome, menos temos critério. O que significa isso? O Livro de Provérbios tem uma resposta para isso: "A alma farta pisa o favo de mel, mas à alma faminta todo amargo é doce"(Provérbios 27.7), em outras palavras: "Quem está com o estômago cheio rejeita até o mel; mas, para quem está com fome, até a comida amarga lhe é doce".

Assim como a  hipermetropia condiciona sua visão do que está perto e assim como a miopia embaça os objetos que estão longe, assim sua fome condiciona o tipo de alimento que você ingere (ou rejeita). Quando a fome se torna nosso único critério de vida, ela determina a nossa percepção das possibilidades de saciá-la fazendo, paradoxalmente com que percamos todo e qualquer critério. Ás vezes acreditamos que só receberemos atenção ou cuidado se formos pessoas perfeitas e corretas e, por isso, nos tornamos escravos da obsessão da perfeição, sem a qual, acreditamos ficarmos desprovidos de atenção. No fim das contas, nos tornamos tão "perfeitos" e "corretos" que as pessoas acreditam que não precisam nos dar atenção e aí, o tiro sai pela culatra.

Quando eu era menino, meu pai costuma contar a história de como alguns esquimós matavam lobos que estavam lhes importunando e causando problemas. Eles mergulhavam uma faca de dois gumes no sangue e repetiam o processo até criar uma crosta em torno da lâmina. Depois disso eles  fincavam a faca na neve com a ponta para cima. Passado algum tempo, os lobos da região sentiam o cheiro e encontravam a faca passando a lamber o sangue congelado. Sua sede e fome o faze lamber avidamente o sangue por completo. Mas por estarem com a língua dormente não conseguem perceber quando ela começa a tocar a lâmina. O lobo continua a lamber, mas agora o que ele esta ingerindo é o próprio sangue. Não demora muito até que o animal morra, literalmente pela boca. 

Este exemplo ilustra exatamente o que quero dizer quando afirmo que uma vez que a necessidade se torna o único critério logo perde-se todo o critério. Perde-se o discernimento e daí podemos nos contentar com pouco achando que é muito ou podemos reclamar do muito que temos achando ser pouco. 

Uma parábola dos evangelhos, conta a história de um moço que pediu ao seu pai a parte antecipada da herança. Ele achava que tinha pouco, mesmo tendo tudo. Saiu da casa de seu pai e viajou para uma terra distante. Acabou gastando todo o dinheiro em futilidades e empobreceu ao ponto de mendigar. A história conta que ao final ele teve tanta fome que sua necessidade o fez desejar comer a comida que era servida aos porcos. Ele foi em busca de tudo, mas acabou tendo nada. Caiu em si e voltou para seu pai sabendo que não era digno de tudo que tinha.

O problema na história do filho pródigo não são os amigos interesseiros, nem as prostitutas que ficaram com seu dinheiro. O problema começa quando a fome se tornou seu único critério. Nesse momento ele perdeu o discernimento e não conseguia mais ver toda a fartura que tinha em volta de si. Ele acreditava que precisava de mais e, por isso pediu sua herança. Quando a fome se torna nosso único critério nós podemos até ser filhos de um homem muito rico, mas acabamos comendo com porcos. Cabe agora ao leitor, assim como ao autor perguntar-se: "Tens fome de quê?"

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Neemyas Dos Santos

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Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.