Tu não és todo o mundo



A despeito do quanto esta verdade possa parecer óbvia é a ela que precisamos retornar se por alguma razão queremos entender hoje o que significa ser alguém. Mais do que uma simples expressão, ela consiste em um contra-argumento infalível utilizado geralmente pelos pais, sobretudo as mães, em resposta a apelos dos filhos tais como:

"Mas mãe, todo mundo vai!"

ou ainda

"Todo mundo já comprou, só eu não tenho!"

Se você ouviu bastante a expressão "tu não és todo mundo" saberá bem que depois de tê-la escutado não haverá mais nada a ser dito, pois ela é irredutível, esmagadora e fulminante! O que se pode dizer depois de um "tu não és todo mundo"!? O que sobra depois disso? Eu diria que sobre apenas você, apenas você como indivíduo, como alguém. Bem, obviamente que, a criança ou o adolescente, recorrem a este princípio vários motivos. Dois me ocorrem.

Em primeiro lugar, os filhos recorrem ao princípio do "todo mundo" para mobilizar nos pais um questionamento sobre si mesmos através da comparação com os outros pais, fazendo-os assim, duvidar de si mesmos na qualidade de sua função paterna e materna. O que está por trás dessa investida é a seguinte linha de pensamento: "Ora, se todos os outros pais permitiram ou concederam a mesma coisa aos seus filhos, o fato de eu não o fazê-lo indica que, possivelmente, não estou sendo um bom pai ou uma boa mãe. Meu filho me odiará, enquanto os outros pais serão amados". O medo de ser odiado pelos filhos, ou melhor, de não ser amado por estes tem impedido muitas pessoas de desenvolverem sua paternidade. Talvez exista uma confusão acerca do que se deve fazer para alcançar o amor dos filhos. Como eu não tenho filhos, não irei me arvorar em dar quaisquer conselhos sobre como ser verdadeiramente amado pelos filhos. Não obstante, penso que ser totalmente permissivo não é a melhor maneira. Mas basta, vamos seguir em frente.

Em segundo lugar, é preciso assumir que, para os filhos, o princípio do "todo mundo" pouco tem a ver com a coisa em si almejada. O alvo é outro. Quero me dedicar, neste ensaio mais a este segundo motivo. Não se trata da viagem em si que "todo mundo" vai, do passeio em si que "todo mundo" se programou para ir, do brinquedo em si ou da roupa em si que "todo mundo" comprou. Os filhos (isto é, nós) querem muito mais se igualar aos outros ou muito mais pertencer ao grupo dos que têm, ou dos que irão fazer algo, do que necessariamente ter ou fazer este algo. A questão não é a coisa ou o evento em si, mas o status que ela lhe confere. Isto é: agora que você foi, "você faz parte", ou agora que você conseguiu, "você é igual aos outros", ou "você não é diferente", ou, finalmente já que agora você tem, então "você é como todo mundo". A raiz de tudo é o medo de ser diferente, ou de se sentir excluído. Se sempre fazer o que os outros fazem se torna o critério para um indivíduo "ser alguém" ou se "sentir alguém", isso se torna um grande perigo.

O princípio do "todo mundo" gera a ilusão de que você  só se torna alguém apenas na medida em que se torna como todos e isso é, claramente uma mentira. É exatamente no sentido inverso que a coisa se define. Você se torna alguém na medida em que reconhece em si o que faz de você você e não os outros. Alguns poderão objetar de que estou apostando em uma proposta platônica da individualidade, na qual as pessoas tem uma essência que nada tem a ver com o mundo externo ou com os outros, mas não é isso o que estou a dizer. O reconhecimento de si como "eu mesmo" e não como outrem se faz exatamente pelo recorte na ou em relação aos outros. O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, em uma leitura fenomenológica da linguística, encontrava a identidade de um signo exatamente "no sentido em que cada um deles significa apenas a sua diferença com relação aos outros". Bem, substitua a palavra signo por indivíduo e tudo ficará mais claro.

Na filosofia, isso se chama ipseidade. É a qualidade que faz de você ser quem você é e não outrem.
No contexto da fenomenologia de Merleau-Ponty, a ipseidade de um individuo não se descobre por si só, ela é evidenciada justamente na medida em que é estabelecida na relação com o mundo e ao meu ver isso acontece em momentos como esse nos quais seus pais te disseram: "você não é todo mundo".Se isso não acontece, você terá dificuldades pra saber onde você termina e onde o mundo começa.

Por isso, é claro que um indivíduo precisa ter em si o sentimento de pertença, isto é, viver momentos que lhe confiram a identificação de ser uma pessoa em comunidade. Por exemplo, pessoas às quais fora sempre negada a oportunidade de estarem com seus pares, de participarem, de fazerem inclusive o que "todo mundo" está fazendo, geralmente ficam "aleijadas" das habilidades sócio-comunicativas e, portanto, limitadas quanto ao conhecimento dos outros e de si mesmos, por conseguinte. Quanto a isso, o mesmo Merleau-Ponty afirmava que "o homem está no mundo, e é no mundo que ele se reconhece". Ou seja, é no mundo que um indivíduo se reconhece, mas isso não faz dele "todo mundo". Ele se reconhece na medida em que se distingue.

O erro dos pais antigos residia na regra indiscriminada de total proibição. "Tu não és todo mundo" funcionava frequentemente como justificativa para afastar seus filhos da vida lá fora. Isso é, claramente, tão ruim quanto privar um recém-nascido do leite materno. Este ensaio, no entanto se endereça especialmente ao oposto dessa regra, uma vez que hoje o imperativo não é mais o "tu não és todo mundo", mas "tu podes ser como todo mundo".

Ψ

FILHOS "LIVRES", PAIS OMISSOS

Existe atualmente a pretensa promessa de que, em oposição aos tempos antigos, nossos filhos terão a liberdade de serem quem eles quiserem ser, quem eles decidirem ser. Que todos somos iguais porque somos diferentes (e o acento dessa afirmativa não está na diferença, mas na obrigação de todos serem iguais). Essa é um dos maiores engôdos contemporâneos.

Os nossos pais e os pais dos nossos pais eram taxativos quanto ao  futuro dos filhos, sobre o que deveriam fazer para se tornar alguém. Eles diziam: "Tu vais ser médico como eu fui médico e o teu avô antes de mim". Ou ainda, "Tu vais ser criada para ser esposa de um homem rico e de bem". Repare, não tenho a mínima admiração por esse modelo de educação e minha pretensão não é romantizá-las com nostalgia e saudosismo. É muita ingenuidade dizer que os homens de tempos atrás eram melhores que os homens de hoje, porque se de fato o fossem então teríamos bons homens hoje, uma vez que os homens de hoje são no, fim das contas, os filhos dos homens de ontem. Simples. Isso, no entanto, não nos impede de rever princípios e valores que tinham sua serventia para aqueles tempos e que, entrando em desuso, trouxeram problemas contemporâneos.

Se por um lado, os pais de dantes não tinham qualquer receio de se indispor com seus filhos impondo-lhes quem deveriam ser, por outro eles entendiam que a responsabilidade por quem seus filhos iriam se tornar era inteiramente deles como pais e não a transferiam a outrem. Caso algo desse "errado", dizia-se: "Onde foi que eu errei?". O fracasso do filho era na verdade o fracasso do pai como pai.

Para alguns pais de hoje indispor-se com seus filhos é algo impensável e, por isso, nada se lhes é imposto. Os filhos estão "livres para ser qualquer coisa". Essa liberdade, no entanto poderia ser traduzida da seguinte maneira:

"Filho, eu não tenho nada a ver com você, não tenho responsabilidade alguma por quem você é ou deixa de ser, se você fracassar, você fracassará por conta própria".

A solução para essa omissão é entregar os filhos às identidades previamente fabricadas ideologicamente. E elas estão aí aos montes para tapar os buracos.

Quando as coisas fugiam o controle dos pais arcaicos, ou quando achavam que não conseguiriam dar conta do recado, entregavam os filhos aos monastérios, seminários, exército, colégios internos etc. Péssima ideia e péssimas consequências. Hoje não é diferente. Mas os pais modernos tem como diferencial o credo de que o melhor é transferir a responsabilidade de quem os filhos devem ser para as ideologias. Porém fazem isso como se operassem uma suposta liberdade. Os filhos não "devem ser obrigados a coisa alguma...". Por essa razão, deixam que suas crias fiquem totalmente expostas a toda sorte de conteúdo porque presumem que desde sempre terão maturidade para escolher o que é melhor pra si. Deixam-nos "livres" para que eles provem de tudo e escolham aquilo que presta e aquilo que não presta. Isso é tão maldoso quanto colocar todo dia na mesa, diante da criança de colo, a possibilidade de ela escolher entre comer frutas ou biscoitos recheados. E, sinceramente não há liberdade alguma nisso tudo.

A liberdade existe quando estamos cientes de nossas escolhas, suas consequências e de nossa responsabilidade sobre elas. Uma criança em seus primeiros anos de vida ainda não têm consciência suficiente das consequências de suas ações até que alguém a instrua. Um adolescente não tem, avalie! Cabe aos pais informá-los que é mais saudável comer frutas a comer biscoito recheado, ou proibir os juvenis de irem a uma festa aonde não haverá adultos e tudo estará liberado. Certo? Ou você é do tipo de pai que deixaria seu filho comer o que quiser para depois ele mesmo perceber que era algo prejudicial e com isso mudar de postura ou culpar a si mesmo por ter feito tanto mal a si? Alguém também poderá dizer que estou apostando na ingenuidade de que os pais pouparão os filhos de todas as decepções, falhas, erros ou frustrações. Ou que estes não tenham as suas próprias experiências e, portanto, se tornam verdadeiros covardes. Na verdade estou falando de instrução, liberdade e, da responsabilidade que os pais têm quanto à preparação dos filhos para o mundo e inclusive para as experiências que eles terão por si só pelo resto da vida, como indivíduos.

Liberdade sem limites não é liberdade é omissão. Não é um quintal sem muros que faz de uma criança, uma criança livre, assim como não é um quintal murado que faz de uma criança, uma criança responsável. Uma criança livre é aquela que morando em uma casa com quintal sem muros tem os limites estabelecidos por seus pais de até onde elas podem ir e a partir de onde elas não podem ir. Daí então ela tem escolha de obedecer ou não. Isso é liberdade. Ela só pode existir se for precedida pela responsabilidade e não existe como imputar responsabilidade a quem ainda não está apto a ela. Assim como um garoto de 15 anos não pode dirigir o carro do pai por aí, por não estar apto. Estar apto nesse caso não é saber dirigir, mas ter carteira de motorista.

Por esse motivo, sou levado a pensar que aos filhos do tempo de dantes, ao menos restava a rebelião e a desobediência. E era nisso que consistia a adolescência. Tornar-se alguém, dependia de uma certa vitória ou fracasso da adolescência: deixar de ser criança seria deixar de ser apenas o que os pais diziam sobre quem você é. Vencer as expectativas dos pais, invertê-las completamente (isto é, ser o oposto do que o pai espera) ou pelo menos aperfeiçoá-las. Isso era a adolescência. A identidade era conquistada e não pré-fabricada e empurrada goela a baixo. Isso é no mínimo algo deprimente pra qualquer ser humano. A psicanálise tem muito a dizer nesse ponto. Hoje não há mais adolescentes rebeldes, porque não há nada para se rebelar, a lei foi apagada e agora o que há é um deserto infinito chamado:

"você é livre para ser quem você quiser ser"

E mais:


"Eu sou seu pai, mas não quero ser sua primeira referência, porque não quero ser responsável porque quem você será, nem quero me indispor pra dizer quem você deve ser, pois não quero a culpa por quaisquer traumas que você venha a sofrer. Estou desde já me livrando acompanhá-lo em uma sessão de psicoterapia. Para descobrir quem você deve ser, siga seu coração, ademais existe um mar de referências plenamente acessíveis na escola e nas telas desde que você aprende bem cedo a discernir as cores". 

Para a criança isso se resume a: "você pode ser como todo mundo", "você pode ser qualquer um". Para o adolescente isto soa como um "você nem precisa ser alguém...". Por isso o descompasso gritante entre o imperativo mercadológico de ter uma profissão de sucesso e a ausência de um chão semântico e existencial firme que conceda aos adolescentes de hoje a ciência prévia de que são alguém, a despeito do que irão fazer.

No caso das crianças as ideologias de plantão assumem o controle que deveria ser dos pais. Muitos Intelectuais, "plenamente" preocupados em desconstruir o passado cruel da opressão do determinismo biológico, vêm substituindo-o ironicamente por outro determinismo, o ideológico.

"Não é o teu sexo que te determina, o que te determina é o gênero com o qual você se identifica". O curioso é que a ideia de gênero não é desenvolvida pelo indivíduo. Aqui surge um parênteses, porque, por exemplo, cá entre nós, atualmente ninguém quer ser homem. Não, não estou falando estritamente de sexualidade. Estou falando dos aspectos identitários da cultura contemporânea. Ser homem, hoje, se tornou sinônimo de retroação, opressão e violência. A masculinidade se tornou a essência do mal, o diabo moderno, um problema da humanidade a ser superado, combatido e suprimido. Algumas feministas que não discernem absolutamente em nada machismo e masculinidade, enxergam a última como os cientistas olham para os macacos: uma fase primata a ser superada.

A cura, diriam, está na indefinição. Na fluidez. É engraçado porque todos hoje em dia usam Bauman para falar de tudo, mas ainda não tive a oportunidade de ver alguém citá-lo para caracterizar os prejuízos da liquidez da sexualidade na contemporaneidade, por exemplo. Obviamente é porque o caráter liquido da sexualidade e da identidade sexual é um ideal contemporâneo. Esse é o novo padrão. E o padrão é não padronizar. Tudo que se propõe padronizar, definir, diferenciar, isolar deve ser diluído, fragmentado, esmiuçado. Tudo isso para não deixar outras pessoas desconfortáveis consigo mesmas, se sentindo inferiores ou menores.

Mas deixemos esse parêntese da liquidez sexual para outro momento. A verdadeira diluição está na impossibilidade de ser alguém.

"Tu deves ser como todo mundo: sem forma, sem contorno, amolecido, indefinido"

Ψ

NASCIDOS DA IDEIA


Entretanto, uma ideologia jamais poderá tornar um ser humano em alguém pelo simples fato de que são feitas de ideias e ideias não cuidam, não amamentam, não protegem, não trocam fralda, não seguram a bicicleta até você aprender a se equilibrar. Ideias não pagam sua escola ou universidade, não proíbem você de ir por um caminho perigoso, não exigem seu boletim, não te disciplinam quando você está errado. Ideias não estão lá no momento certo para dizer quando é a hora de falar e quando é e hora de calar a boca, ideias não protegem do frio, não defendem você de uma injustiça, não te levam pra passear e nem planejam sua festa de aniversário. Ideias não te obrigam a pedir perdão e a reconhecer quando você errou, não acordam você pra ir para escola e nem se preocupam em fazer um lanche. Ideias são ideias, pessoas são pessoas. Ideias geram ideias, pessoas geram pessoas. Só alguém pode ajudar você a se tornar alguém.

É possível que o leitor esteja imaginando que o autor do texto está assumindo exemplos bem românticos de pais cuidadosos e amorosos. E que talvez o mesmo desconheça ou ignore o fato de tantos pais relapsos, irresponsáveis e inconsequentes. Quero dizer que estou bem ciente de todos estes casos. Mas ao contrário de boa parte do pensamento contemporâneo, não acredito que a saída para este problema seja desresponsabilizar estes pais e creditar às ideologias a autoridade no tocante a construção da identidade dos filhos. Antes a via a ser adotada, e à qual este ensaio se dedica, é o de em reconhecer o poder de impacto dos pais na vida dos filhos, reencontrando na paternidade a responsabilidade intransferível para tal dever. Pois filhos de ideias são filhos bastardos de humanidade e é isso que o "desconstrucionismo" está tentando criar.

Certamente as pessoas se guiam por ideias na tarefa de educar seus filhos, o que é perfeitamente natural. Mas o que elas, na posição de pais colocam em prática com toda a espontaneidade do mundo não é o discurso de um pedagogo ou psicólogo, mas o modo como foram educadas. E, não raramente, mesmo que alguém odeie a maneira como foi educado e, busque avidamente por ideias, que lhe ajudem a superar tudo o que sofreu de modo a tentar fazer absolutamente o oposto do que aprendeu na infância, provavelmente irá acabar repetindo com os filhos o que aprendeu com os pais que tanto odeia. Ou isto, ou passam a vida tentando ser o negativo dos pais e até isso é em relação aos pais.

"Serei tudo que meu pai não foi"

O indivíduo não percebe que seu odiado pai continuará sendo seu único parâmetro de identidade. E na verdade quem odeia, tem muito mais dificuldade de se tornar alguém diferente do odiado porque acaba ficando preso pelo próprio ódio. Por isso ouso dizer: Ideias não mudam pessoas, relacionamentos sim. Por esse motivo, quem vê Jesus Cristo como uma ideia não pode ser transformado pelo seu evangelho. Mas aqueles que se encontram com a pessoa de Jesus Cristo, estes sim podem ser transformados por quem Ele é. É a pessoa Dele que é transformadora. Não são as ideias de Jesus que viviam em Paulo. "Cristo vive em mim", dizia o apóstolo.

Como psicoterapeuta tenho testemunhado da experiência de que um psicodiagnóstico não é suficiente para fazer com que alguém deixe a condição de doente. Caso fosse assim, psicólogos não adoeceriam das emoções. Ciência não é suficiência. Existe uma crença de que pessoas com boas ideias são boas pessoas. Pura bobagem! Estão colocando suas fichas num conto de fadas aonde pessoas intelectualizadas, isto é, bem recheadas de ideologias boas, são pessoas melhores do que as outras. Como se uma ideia por si só pudesse moldar o caráter dos indivíduos. Caso fosse assim não teríamos tantos relacionamentos abusivos, opressores e violentos entre casais de militantes dos direitos humanos, igualdade de gênero, da diversidade e do respeito humano. Ou ainda, os frequentes relatos de homossexuais misóginos.

Portanto, pertencer a uma identidade coletiva não é garantia alguma sobre quem o indivíduo é. Denominar-se evangélico não é garantia alguma de que o indivíduo é cristão. Ser policial, não garante que o indivíduo seja honesto e respeite as leis. De igual modo, um leitor de Paulo Freire pode continuar sendo um opressor e não um libertador. Esperar que as ideias ou ideologias sejam as principais responsáveis pela construção da identidade dos indivíduos é tão pernicioso quanto ensinar a um jovem soldado os valores militares, dar-lhe aula de história acerca das grandes guerras, colocar um fuzil em suas mãos e o enviar para o confronto sem qualquer preparo físico e mental, ou sem que ele tenha passado por um treinamento de tiro, ou sem ter tido a experiência de passar alguns dias na selva sobrevivendo.  Assim também, uma mente cheia de ideias, ou como diria Dostoiévski, uma "consciência amplificada" é completamente insuficiente para alguém transformar sua própria condição de ser quem se é. Nas palavras do escritor russo, em "Notas do Subsolo", encontramos essa constatação:

 "Mesmo se ainda restasse tempo e fé para se
transformar em algo diferente, provavelmente você mesmo não iria querer se
transformar; e, se quisesse, ainda assim não faria nada, porque talvez não
houvesse no que se transformar. Mas o principal e o fim derradeiro é que tudo
isso transcorre de acordo com as leis normais e básicas da consciência
amplificada e pela inércia derivada diretamente dessas leis e, conseqüentemente,
nesse caso não só não é possível transformar-se, como simplesmente não se pode
fazer nada. Por exemplo, resulta o seguinte em conseqüência da consciência
amplificada: você está certo em ser um patife, como se fosse consolo para um
patife se ele mesmo já percebe que é realmente um patife"

Um deprimido não deixa de ser deprimido pelo simples fato de ter sido diagnosticado, assim como um patife não deixa de ser um patife pelo simples fato de perceber-se um patife. Não obstante, é preciso lembrar que muitas vezes tomar ciência de si consiste num primeiro passo rumo à transformação ou à cura. Quem não se percebe doente não procura ajuda. De qualquer maneira, o que tenho experimentado em psicoterapia é que depois do reconhecimento da necessidade de ajuda, é a relação terapêutica, desenvolvida entre mim e o paciente que se torna a principal condição de mudança de um quadro clínico.

Portanto, aqui nos perguntamos, em que mundo estaríamos na medida em que se confia a identidade de um filho a uma ideologia ou a um conjunto de ideias pré-fabricado? Acaso seria este o cumprimento da profecia de Dostoiévski (em "Notas de Subsolo"):

"Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos – 
não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o
que amar e o que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é
difícil ser gente – gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos
vergonha disso, achamos que é um demérito e nos esforçamos para ser uma
espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos, e há muito tempo
nascemos não de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais. Estamos tomando
gosto. Em breve vamos querer nascer da ideia, de algum modo."

Acredito que ainda é muito válido o contra-argumento fulminante de nossos pais. O indivíduo que ouve "tu não és todo mundo", passa a desenvolver uma âncora psicológica que lhe faz saber que ele continua a ser alguém, mesmo que não esteja se sentindo alguém, ou mesmo que não esteja fazendo o que todo mundo está fazendo. Esta âncora é feita não de ideias, mas de relacionamento humano. Tal afirmativa concede ao indivíduo tanto a certeza de que ele pertence a alguém quanto a ciência de que ele já é alguém: isto é, o filho de seu pai ou de sua mãe. No futuro ele poderá, a partir dessa primeira identidade ser outras coisas. Mas antes de tudo ele começa como filho de alguém e não como filho de uma ideia. "Tu não és todo mundo" e isto faz de ti alguém, exatamente na medida em que, inversamente, ser "todo mundo" é abster-se de ser alguém.


Ψ

"PORQUE TU ÉS MEU FILHO"


Não, tu não és todo mundo e existe um motivo para isso:

"Tu não és todo mundo, porque tu és é meu filho."


Até agora estive falando de pais humanos, mas e se falássemos agora de um outro nível de paternidade? Para aqueles que, assim como eu, se tornaram filhos de Deus, através da adoção em Cristo Jesus, o que se pode entender quando o próprio Pai celestial nos diz:


"Tu não és todo mundo, porque tu és é meu filho."

Lembre-se que o contexto do qual estamos falando é aquele no qual os filhos pedem coisas aos seus pais se utilizando do argumento "todo mundo". Quantas coisas pedimos a Deus porque queremos ser como todo mundo? Porque queremos nos sentir alguém! Quantas vezes questionamos a qualidade da Sua função paterna por Ele não nos dar aquilo que aparentemente outras pessoas têm! Quantas vezes nos sentimos excluídos ou menos especiais do que outras pessoas, do que outros cristãos porque utilizamos critérios humanos de comparação. Dizemos ao Senhor: "Deus eu queria tanto ser como as outras pessoas normais". Enquanto isso, para Ele tudo que menos importa é fazer de você alguém comum. Para cada filho Deus tem uma história especial e nenhuma identidade pode melhor do que esta de ser filho de Deus.

É verdade que, a princípio, a depender do grau de descontentamento pela negação de um pedido, os filhos podem odiar o "tu não és todo mundo" do pai celeste. Porém certamente saberão a partir dela e, com toda a concretude que pode existir em uma vida, que eles pertencem a Alguém. E que não precisarão se tornar "todo mundo" para serem ou para se sentirem alguém, porque já são filhos do melhor pai que pode existir.

"Especialmente, porque tu és meu filho, já não podes ser como todo mundo. Tu és meu filho e isso te basta. Tu és meu filho e nada poderá mudar isso"

De uma vez só, Ele nos faz saber quem nós somos e a quem nós pertencemos.

Neemyas Dos Santos








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Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.