Tudo que eu não tive

Uma criança, por mais nova que seja, sabe muito bem, tudo aquilo que lhe é devido. Um bebê acorda sua mãe em meio a madrugada, sua fome é imperativa. Com aflição, sua mãe olha para os seios improdutivos, pois não há leite suficiente. Indiferentemente, sua cria, se comporta como alguém que está no seu direito, por isso se põe a chorar. 

As crianças parecem saber desde sempre aquilo que lhes é devido.

Vai ver é por isso que o menino, mesmo já tendo comido, teima em dizer, “Mãe, quero mais...”, enquanto ignora a panela vazia. 

Vai ver é por isso que uma filha carente de afeto, ainda insiste em buscar carinho no abraço do pai que há pouco lhe enxotou como um cachorro sem dono.

Nós nascemos e cedo experimentamos a insuficiência dos nossos pais. Sempre lhes falta algo que não passa desapercebido aos olhos infantis. Ao longo da vida, passamos a interpretar tais insuficiências como uma espécie de injustiça, se não dos nossos pais, então da vida. Sentimos que não nos foi dado aquilo que nos era devido. 

A alma humana é projetada para ser satisfeita e plena, por isso, os padrões infantis são elevados. Uma criança é um exemplar de Deus. Duro lhe é contentar-se com um mundo muito aquém daquele ao qual ela foi destinada. Tudo lhe é insuficiente, a começar de seus pais.

De todo modo, eventualmente, nós crescemos e, então tratamos de corrigir as coisas. É quando dizemos: "quero te dar tudo que eu não tive". Frequentemente tentamos superar a insuficiência daqueles de quem nós dependíamos, sendo suficientes para aqueles que dependem de nós: namorados, cônjuges, filhos, irmãos, amigos, ou até mesmo, os nossos pais.

Ser suficiente é uma forma de dizer ao outro: eu te basto. Quando tentamos ser suficientes, instalamos o outro numa relação de total dependência conosco. Passamos a ser seu deus. O custo disso é muito alto, para ambos as partes, uma vez que, cedo ou tarde, nos descobrimos insuficientes, assim como nossos pais.

Ao longo destes anos de experiência clínica, tenho acompanhado pacientes que nutrem um terrível e avassalador sentimento de insuficiência. Com frequência, o senso de identidade dessas pessoas coincide ou se restringe a algum papel ou função: ser esposa, marido, filho, chefe, pastor, mãe, pai, professor, cientista, médico etc. 

Com o passar do tempo, também notei que, existe algo muito comum entre quem sofre de depressão ou ansiedade: muitas vezes, em ambos os casos, as pessoas estão implicadas na tarefa de serem suficientes para algo ou alguém. 

A diferença básica é que: na depressão o indivíduo sente que já fracassou e que não será capaz de ser suficiente (novamente). Na ansiedade, por outro lado, o indivíduo, mesmo que deteriorado e destruído, ainda se percebe capaz ou compelido a ser suficiente. Eventualmente, este último quadro leva ao primeiro, isto é, a ansiedade culmina em um episódio depressivo.

Pode parecer que não, mas tentar ser suficiente é tentar ser a salvação de algo, alguém ou de si mesmo. A salvação, todavia, não é um tema da psicologia, mas da religião.

Apesar da autossuficiência normativa na qual vivemos, a Fé Cristã insiste, desde o seu surgimento, que não importa o quão amável, inteligente, caridoso, comprometido, estudioso, correto ou altruísta você seja, para fins de salvação, nada disso será suficiente nem para você e nem para as pessoas que dependem de você.

E você? Por acaso anda se sentindo insuficiente? Não se preocupe, é porque você é. Só a Graça basta. 


Gostou da leitura? Compartilha ela com alguém que você se importa.

 Quer receber os futuros posts em primeira mão, gratuita e diretamente no seu e-mail? Basta clicar na raposa.


Comentários

Minha foto
Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.