Coisa de gente burra


Quando eu era criança, quase não via meu pai. Quando eu acordava, ele já havia saído e, quando eu ia dormir, ele ainda não havia chegado. Papai trabalhava durante o dia e estudava a noite. Uma vez ele me levou consigo para o trabalho. Foi bem divertido, porém cansativo. Quando chegou à tardinha eu já queria ir pra casa, mas ainda tínhamos que ir à universidade.

Na universidade, os corredores eram longos, pareciam não ter fim. Ao passo que meu pai andava apressado, eu segurava sua mão enquanto esbarrava em gente rica, bem vestida e cheirosa. Era claro pra mim a realidade de que meu pai era o único negro da turma. Na época, eu mesmo já havia experimentado ofensas pela cor da minha pele.

Ao fim da aula, tivemos que correr atrás de um professor. Àquela altura, eu já me arrastava. Meu pai quis me carregar, eu recusei. Eu queria andar, como ele, com ele. Finalmente encontramos o professor. Ele abriu uma pasta marrom e tirou de dentro dela um papel rabiscado de caneta vermelha, era uma prova. Eu já sabia o que era uma nota, de relance, vi que havia um 2,0 bem grandão no cabeçaalho. Olhando meu pai por cima dos óculos, o professor disse:

“Ahh sim! Aqui está, Ribamar...confesso que fiquei decepcionado. Isso é coisa de gente burra, heim?” 

Meu pai não esboçou resposta. Pegou a prova, dobrou ao meio e a enfiou na bolsa. Quanto a mim, eu apertava a mão do meu pai. Ia apertando e apertando sem dizer coisa alguma. Eu conhecia meu pai, ele não era burro. Eu estava profundamente ofendido.

Hoje, lembrando disso, fiquei me questionando: “Por que nos ofendemos?” Quero dizer, eu era apenas um garoto e, aquelas eram “apenas” palavras de um desconhecido. Cheguei à conclusão de que eu me ofendo porque sou alguém. Eu já era alguém, antes mesmo de nascer, antes mesmo de saber que eu já era alguém. Eu já era alguém antes de me dar por gente. Isso me faz saber que, se, por um lado, eu não sou Deus, o Criador de mim, por outro, eu não sou nada. Quem me criou, me fez alguém desde o início, por isso, tão cedo, me ofendo. 

O pressuposto de que tudo é construído socialmente ancora-se na crença de que, originalmente, o homem é nada. Pode até parecer banal, mas ideias como essas são massivamente nocivas. Não há nem espaço, nem sustentabilidade para a dignidade humana quando presumimos que um indivíduo é, no princípio, ninguém. A ambição em torno do aborto se nutre desta pressuposição.

Todavia, eu não sou um mero produto, seja de uma soma de coincidências randômicas do universo, seja de uma soma de acontecimentos políticos e sócio-históricos. Meu ser está sempre aquém disso tudo.  Eu tenho uma essência que precede a minha existência. É exatamente isso que faz de mim um ser único e, sim, especial, por isso “ofendível”. 

Meu senso de dignidade não é um construto que me foi dado pela sociedade ou pelas políticas públicas, mas, precisamente, e, por ser inerente a quem eu sou desde o ventre da minha mãe, é a minha dignidade que, antes de tudo, exige do mundo toda a dignidade que me é devida. 

Minha dignidade me foi dada desde o princípio como uma consequência imediata da imagem da qual eu sou dotado, aquilo que me foi dado, isto é, o que eu recebi, não dos meus pais, nem dos meus avós, mas Daquele que nos fez do seu próprio decalque.

Um bebê é, por natureza, pura exigência de dignidade, por isso, não há ofensa mais desumana do que aquele dirigida a um recém-nascido. Quanto mais puro é um ser, maior lhe é a ofensa dirigida. Aplique isso a Deus e você entenderá porque há o inferno. 

Eu sou alguém porque fui criado por Alguém, logo, nós nos ofendemos porque há um Deus que se ofende. Todos ofenderam a Deus.

Gostou da leitura? Compartilha ela com alguém que você se importa.

 Quer receber os futuros posts em primeira mão, gratuita e diretamente no seu e-mail? Basta clicar na raposa.


Comentários

Postar um comentário

Minha foto
Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.