Linguagem Neutra: A Natureza das Palavras

Em suma, a reivindicação de uma linguagem neutra é a reivindicação de uma linguagem não binária.  A fim de contemplar as possibilidades de gênero que excedem o masculino e o feminino, a linguagem neutra propõe uma supressão e substituição destas categorias linguísticas binárias.  

Um dos principais argumentos de seus proponentes é de que a língua portuguesa é sexista. Contudo, uma língua não pode ser sexista, ela não é um ser autônomo e dotado de consciência ou vontade. Apenas uma pessoa pode ser sexista. A palavras não podem ser desrespeitosas, discriminatórias ou opressoras por “natureza”.  É de se admirar que no século em que vivemos, as mesmas pessoas que se esforçaram diligentemente para anular a natureza humana inscrita na biologia sejam as mesmas que agora apostam tudo em uma natureza humana inscrita nas palavras.

Para assumirmos que a as palavras comportam uma natureza inerente a elas mesmas, teríamos de abrir mão das bases linguísticas lançadas por Ferdinand de Saussure, em especial, o "princípio da arbitrariedade do signo". Transferir a maldade do mundo para as palavras é uma forma desesperada de se livrar da maldade no homem. O problema não está nas palavras, mas no coração do homem.

O filósofo francês, Maurice Merleau-Ponty nos lembra de que uma das principais lições ensinadas por Saussure é a de que um signo depende de todos os outros para demarcar sua própria significância. A própria demarcação da significância se realiza na diferença de um signo em relação aos demais. Por esse motivo, uma palavra não detém uma natureza real intrínseca e independente. 

Ademais, a mera alteração morfológica da estrutura de um signo consiste em um recurso impotente diante de toda a estrutura geral da língua. A alteração ou a substituição de um signo não é necessariamente suficiente para alterar uma realidade. O que precisa mudar não são as palavras, mas as relações humanas em meio às quais os signos são meramente instrumentos. 

O que um signo faz é inscrever no território da escrita ou da fala uma realidade já disponível. O caminho inverso não é totalmente recíproco, uma vez que, nem todas as palavras que criamos produzem novas coisas ou realidades. Precisaríamos ser deuses para deter o poder total da criação por intermédio da linguagem. Temo que não sejamos.

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (o último) nos ensinou que a linguagem não deve ser compreendida como um espelho do mundo, mas como um instrumento. O sentido e o significado das palavras, depende do uso que fazemos delas. Nossa comunicação e nossa forma de alcançar os outros por meio da língua só pode ser exercida e compreendida dentro do que Wittgenstein chamou de “Jogos de Linguagem”. 

Dessa forma, o problema, mais uma vez, não está nas palavras em si, mas no uso que delas fazemos. Tome como exemplo a palavra “bicha”. Há algumas décadas atrás a palavra bicha era comumente usada como insulto e, ainda pode ser. Porém, mais recentemente,  esta palavra passou cada vez mais a pertencer ao domínio de muitos homens gays

Chamar “bicha” se tornou um termo pertencente aos próprios homossexuais que subverteram seu uso depreciativo por uma forma de tratamento entre si mesmos, como frequentemente se pode ver. O que isso significa? Que uma mesma palavra pode adquirir sentidos diferentes a depender do uso que dela se faz por diferentes tipos de pessoa em diferentes “Jogos de Linguagem”.  

Extinguir uma palavra, ou substituí-la por outra não é garantia alguma de que alguém será poupado de uma ofensa ou dotado de dignidade e respeito. Segundo Jordan Peterson, não existe nada que possa me obrigar a respeitar uma pessoa. Logo o respeito não encontra sua plenitude nas palavras, mas na intencionalidade do coração que as usa. É possível insultar alguém usando os mais elevados pronomes de tratamento. 

Outro argumento frequentemente usado pelos proponentes é o de que uma linguagem neutra seria mais inclusiva. Todavia, um idioma não precisa ser neutralizado para ser inclusivo. A língua já é uma totalidade viva e aberta, tanto à novas palavras, quanto à novas significações. 

Inventar novas palavras para atender a realidades emergentes é um movimento espontâneo da língua. O que não é espontâneo é a alteração forçada da linguagem para impor um tipo específico de realidade. Este tipo de movimento é característico de posturas totalitárias. Sociedades totalitárias são obrigatoriamente neutras.

A busca por inclusão, enquanto acolhimento das diferenças, não decorre de uma supressão das diferenças. Homogeneizar e neutralizar, são, na verdade, estratégias de anulação da diversidade. Por isso, a neutralização da linguagem é essencialmente excludente e não inclusiva.

A linguagem neutra não fala em nome da inclusão porque seu primeiro movimento busca excluir categorias já existentes. Seu principal objetivo não é aumentar o leque de possibilidades de expressão e reconhecimento identitários, mas anular as categorias binárias de gênero já existentes. Seu interesse não é acrescentar diversidade, mas abolir padrões considerados sexistas por natureza. Não existe algo mais intolerante e contrário à diversidade do que a neutralização da linguagem e da vida.

O motivo pelo qual algumas pessoas estão em busca de um idioma neutro, pode ter menos a ver com a linguagem ou a sexualidade e mais a ver com uma demanda de identidade. A linguagem e a sexualidade podem servir apenas como instituições veiculares de auto-afirmação. É assim que a linguagem, para estes grupos, deixa de ser enxergada como instrumento e passa a ser tomada como representação de uma suposta realidade intrínseca. A redução da linguagem ao grau de representação da realidade é oriunda de uma demanda por representatividade. 

Os indivíduos querem transformar tudo em objeto de representatividade. A partir daí o indivíduo quer versões do mundo para si. Ele exige uma religião que lhe represente, uma política que lhe represente, um gênero que lhe represente e, é claro, uma linguagem que lhe represente. Representatividade hoje é tornar o mundo a imagem e semelhança do indivíduo. Sem isso ele se sente desrespeitado, não reconhecido, inexistente, invisível, oprimido etc. Que tipo de identidade narcisista é essa que só se faz na medida em que transforma o mundo em uma imagem de si?

Nunca houve tanta busca por representatividade, as pessoas cada vez mais afirmando a necessidade um monopólio da linguagem como recurso último da invenção de si. Em “Identidade e Modernidade” Anthony Giddens discute quais são os recursos de que dispomos atualmente no desenvolvimento da auto-identidade.

Uma vez que as formas tradicionais de individuação têm sido mitigadas pela modernidade, o indivíduo passar a ancorar sua identidade em territórios públicos como a política ou a linguagem tratando-os como se fossem um domínio particular do eu. 

O indivíduo quer reivindicar singularidade, quer dar uma casa ao seu ser, quer encontrar sua dignidade de ser alguém, mas como isso não foi lhe dado nem pela ciência, nem pelas novas espiritualidades a-religiosas e muito menos pela família, ele se descobre em uma tarefa solitária de encontrar-se consigo mesmo. Caso não se encontre, ele que se invente do zero!  É assim que ele começa a construir retalhos linguísticos para a sustentação de um frágil ser que se desmancha quando não é reconhecido.

Que alternativa temos diante de uma insustentabilidade e de uma objeção à linguagem neutra? Simples! Alterando o uso da palavras. Existem muitas maneiras de usar a linguagem em favor do respeito e da tolerância, algumas delas passam pela dilatação do significado das palavras. O que é não mudará, se estivermos falando de um contexto social democrático, é que a língua é algo que é de domínio público. Por isso você pode dar às palavras o uso que bem entender, mas não poderá exigir das pessoas que elas compreendam algo que tem um significado só pra você. 

Humoristas e poetas têm o dom de dar novos usos às palavras, mas nem por isso deveríamos crer que seus livros e poemas deveriam estabelecer de uma vez por todas significados socialmente fixados. Isso seria o fim da própria Liberdade de expressão.

Não há exemplo mais genial do que a última cena de “O Grande Ditador”, na qual Chaplin se utiliza da mesma estética do discurso totalitário para então transformá-lo de dentro para fora enquanto cede o seu lugar a um verdadeiro convite aberto à democracia.

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Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.