Mordida

 

O animal ferido perde o discernimento das coisas. Não entende sua ferida, não sabe como curá-la. Se debate e se agita. Quando alguém se aproxima, ele tenta fugir, quando não consegue, ataca. O animal ferido ataca qualquer um que chegue perto. Ele não sabe distinguir entre a ameaça e o socorro, tudo lhe imprime perigo. É por isso que, quando perde este critério, ele também se torna completamente incapaz de se ajudar, se defender ou de se salvar. 

O animal ferido não pensa corretamente. Quando acuado, ataca e morde a vara com que lhe batem, a rede com que lhe prendem e a corda com que lhe amarraram. Semelhantemente, ele é capaz de morder a mão que lhe sara e o braço que lhe socorre. Para ele tudo é a mesma coisa, porque ele perdeu o critério. Ele não sabe onde termina o chicote e onde começa a mão que lhe açoita. Ele não pode compreender o que vem de fora porque sua dor é do tamanho do seu mundo. Tudo que ele entende é a dor. 

E nós? Quando estamos feridos não pensamos direito. Nossa razão se torna obsoleta e a dor passa a ser o centro das nossas atenções. A alma desesperada protege a si mesma como uma criança protege seu "dodói". Queremos acabar com a dor sob a condição de preservarmos a ferida intacta, ainda que ela esteja nos matando. 

Quantas coisas um ser humano é capaz de fazer para aliviar sua dor? Ele é capaz de destruir um planeta inteiro à procura da solução. Não é de se espantar que ele trate de infligir aos outros o mesmo mal que lhe atormenta. Ele transmite aos outros a sua dádiva, pois é tudo que tem. É por isso que vemos pessoas repetindo a mesma violência da qual foram vítimas. Para aplacar sua dor, a alma ferida machuca os outros e, na verdade é capaz de machucar a si mesma como forma de controlar a própria dor. É o que hoje a psicologia chama de self-harm. A alma corta o corpo, perfura e arranha a carne como quem quer se livrar de si. 

Pobre alma, não sabe que quanto mais preserva sua ferida, mais alimenta sua dor. E assim ela conduz a vida até que a dor parece cessar, coisa da qual se vangloria. Sente que, afinal de contas detinha dentro de si mesma a cura da qual necessitava. Não lhe ocorre que sua anestesia não provém da cura, mas da lepra que se alastrou, penetrando até seus ossos. Este, porém, é apenas uma manifestação de uma ferida que todos nós temos. 

Quantas coisas um ser humano é capaz de fazer para aliviar sua dor? Ele se torna extremamente destrutivo e os filmes de ficção revelam o rastro de devastação que os vilões provocam em torno de si. Nós somos esse vilão. E o que faz de nós vilões é que destruímos as coisas e os outros enquanto procuramos a cura para nossa dor. Por isso tantos relacionamentos amorosos se tornam tão perniciosos. O vilão sempre está convicto de que a destruição é, na verdade, a solução. 

Para ser curada, a alma precisa ser vencida. Ela precisa ser rendida e derrotada, do contrário jamais será curada. A alma machucada lutará até o fim contra qualquer chance de ajuda e, é por isso que ela, tal como o animal ferido, irá desferir golpes fatais e mortais ardis contra aquele que se aproximar para lhe salvar. A alma ferida é capaz de matar para preservar sua própria condição. É por isso que só o amor pode salvar porque só o amor pode sobreviver. Amar é um ato de dar o braço à mordida. Você só pode ser curado por Alguém que sobreviva a você. 

O problema é que nem você sobrevive a você. Somente o Eterno pôde sobreviver a você e a mim e, na verdade, se você prestar bem atenção foi exatamente isso que aconteceu na história do cristianismo. Eu e você dilaceramos a carne Daquele que se ofereceu em nosso resgate. Mas Ele que é a exata expressão do Amor venceu o mundo e a morte. Cristo é Aquele que pode curar nossa alma porque Ele sobreviveu tanto a nós quanto a aquilo que nos machucou: o pecado.

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Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.