A Pia Sagrada
Hoje pela manhã, depois de ter feito um atendimento clínico, fui a cozinha tomar água. Chegando lá fiquei olhando a pia. Tudo estava devidamente organizado para o preparo de mais um dia de refeição. Minha esposa havia deixado, em ordem, tudo que ela iria precisar para fazer nossa comida. Enquanto eu fiquei ali em pé olhando e admirando aquela pia miúda e apertada, mas devidamente preparada, um pensamento me ocorreu:
"Este é o seu local de culto"
Amém! Como nunca vi isso? A pia, assim como a cama, a mesa e o sofá, é um lugar de encontro entre eu, Lívia e Deus. O povo de Israel dispunha de um tabernáculo, eu e minha esposa, temos a pia. Ela suja as panelas, eu lavo.
Lívia sabe abrir na cozinha uma espécie de caos controlado de onde ela tira seus ingredientes preciosos. Depois da tempestade, eu limpo e lavo tudo que foi sujo e coloco as coisas em ordem devolvendo-as ao seu devido lugar. Qualquer um que conhece Lívia de perto sabe muito bem que ninguém está a salvo enquanto ela está na cozinha. Ela não economiza na bagunça e nem permite que eu fique por perto, mas o resultado final é sempre único e deslumbrante como uma verdadeira obra de arte.
Do que Lívia preparou para nosso café da manhã de hoje |
Aqui em casa nós brincamos muito sobre como as louças são infinitas. Enquanto houver gente, há louça suja. E de fato existe um caráter de eternidade nas louças, elas parecem nunca ter fim. O problema é que geralmente achamos isso muito chato, rotineiro, sem graça e entediante. Quando terminamos nossa refeição, tudo o que menos queremos é ficar em pé com a barriga na pia molhada. Precisamos redescobrir o culto na pia, ela também é sagrada. Aliás, o que não é?
Agora mesmo, enquanto eu termino de escrever esse post, estamos prestes a almoçar. Minha esposa pegou a vassoura e varreu a sala onde fica a nossa mesa das refeições. Enquanto varria o chão ela falava consigo mesma dizendo:
"Nós não podemos almoçar na poeira..."
Você pode simplesmente chamá-la de neurótica da limpeza, eu vejo de outra maneira. Cada pequeno ato do dia a dia, cada valor atribuído a uma coisa aparentemente irrisória ganha sentido na totalidade do nosso culto e da nossa adoração ao Criador. Como negligenciamos por tanto tempo que tudo que fazemos, fazemos para a glória de Deus? Talvez por não levarmos tão a sério a novidade de que "os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade" - João 4:23.
Talvez haja aqui alguma teodiceia que nos ampare a dizer que, à altura do campeonato, o fechamento dos templos religiosos tenha pelo menos um ponto positivo: ele nos forçou a ampliar nosso conceito de culto. Não estou falando apenas de fazermos o culto doméstico ou o devocional regularmente, incluindo-os em nossa rotina apertada. Apesar de serem indispensáveis e centrais na vida da família, estes elementos também são apenas partes do culto como um todo.
É inegável que para a maioria de nós, cristãos, a liturgia estava sendo fagocitada pelo ritmo conturbado e abarrotado da semana. Nossa solução não era outra senão, tentar esforçadamente separar o domingo para adorar a Deus junto com nossos irmãos. Ainda assim, como o trabalho, o entretenimento e os estudos sugavam toda nossa energia, com cada vez mais frequência, o final de semana precisava dar lugar ao descanso em detrimento do serviço na casa do Senhor.
E agora? Agora a maior parte de nós passa mais tempo em casa. O tempo dilatou e nós ficamos desnorteados. Descobrimos então que há liberdade de culto em qualquer lugar e é assim que deve ser.
Isso, porém, nada tem a ver com o nosso anseio para que os cultos presenciais voltem urgentemente. Se um crente não tem o desejo ou ao menos a necessidade de ir ao templo adorar, certamente algo errado está acontecendo. Porém o problema em questão não é apenas se o cristão defende ou não a reabertura dos templos, mas se ele consegue ou não enxergar liturgia fora do templo, como na pia, por exemplo. Se não temos prazer na liturgia do ordinário¹ o que isso tem a dizer da nossa adoração no templo? Se você quer um termômetro de como anda seu culto, basta se fazer uma perguntinha simples:
"O que é mais difícil para mim: adorar no templo ou em casa?"
Não quero que você retenha a ideia de sou um exímio adorador no lar. Apesar de eu gostar mesmo de lavar louças, há dias que evito olhar a pia cheia. Finjo de conta que não vejo a air fryer ali no canto, engordurada e cheia de água desde ontem. Lembro que amanhã será um novo dia e se eu quero ver beleza no café da manhã da minha esposa eu preciso colocar as coisas em ordem hoje.
Não é minha intenção que você se sinta culpado por não morrer de amores por uma pia cheia de louças com restos de comida ou cheiro de ovo. Minha intenção é provocar você para ampliar seu senso de liturgia e encontrar nas coisas mais chatas e rotineiras o valor do cuidado e do exercício de adorar. Tudo que você faz é culto. O exercício de descobrir a beleza da adoração ao Criador nas coisas mais ordinárias e irrisórias da vida, podem tornar seu dia a dia menos enfezado e ressentido. Que Deus me ajude a encontrar beleza quando eu tiver que lavar o banheiro, porque esse é o pior ritual de todos para mim.
¹O que abriu meus olhos para essa questão foi a leitura do livro "Liturgia Do Ordinário: Práticas Sagradas Na Vida", escrito por Tish Warren, uma irmã anglicana muito abençoada. Vale a pena a leitura do mesmo!
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