Entrou água


Eu era recém chegado em Cruzeiro do Sul quando, diante de um grave problema, um rapaz olhou pra mim, deu um longo suspiro e disse: “Entrou água...”. Essa foi a primeira vez que ouvi essa expressão. Se a gente para pra pensar um pouco, de fato, quando “entra água” as coisas dão defeito, estragam, deixam de funcionar, queimam, desmancham, enferrujam e, em algumas circunstâncias, as coisas afundam. É o caso dos barcos.

Isso me fez lembrar de algo que ouvi na infância. Na história, um menino Holandês nota uma pequena rachadura em um dos diques, contenções para evitar que o continente seja invadido pelas águas do mar. Estava entrando água e ele precisava tomar uma decisão: correr quilômetros para mobilizar os moradores da cidade (o que custaria um tempo decisivo), ou simplesmente ficar ali e colocar o dedo na fissura até que alguma ajuda aparecesse. A verdade é que a pobre criança acabou passando a noite toda acordada, encostada no muro. Se contorcendo de frio, aquele bravo rapazinho sequer conseguia sentir seu próprio dedo. Gritou, mas ninguém ouviu.

Na manhã seguinte, um pescador o encontrou, vivo, porém desfalecido. Seu dedo, no entanto, estava na rachadura. A moral da história é simples, mas profunda. Não devemos ignorar rachaduras, por menores que sejam.

Nós costumamos ignorar pequenas rachaduras, porque gastamos mais tempo tentando mobilizar o mundo acerca dos problemas do mundo. Nosso tempo é gasto com tantas causas, com tantas ameaças, com tantos problemas da humanidade, da política, da religião, da economia que acabamos esquecendo as rachaduras que estão se abrindo no quarto dos nossos filhos, no teto sobre a mesa de jantar, debaixo das camas de casal. Está entrando água. Silenciosamente. Está entrando água por todos os lados e quando acordarmos estaremos de pés encharcados.

É impossível evitar tempestades e o mar agitado do mundo lá fora, mas é possível evitar que a água entre. Há rachaduras em cada lar, elas precisam ser reparadas, não ignoradas. Mesmo que seja necessário perder uma noite ou duas, em claro, com o dedo dormente na fissura. O que não pode é deixar, a água entrar. Quais são, Senhor, as rachaduras do meu lar?

Quer receber meus futuros posts direto no seu e-mail? Basta clicar na raposa.

Comentários

Minha foto
Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.