Quanto mais forte a gente é, menos carinho a gente recebe?


Quem não quer ser forte num mundo como esse? Só conheço um tipo de pessoa que não quer ser forte, são aqueles que preferem viver como sanguessugas, às custas dos fortes. Parece injusto não é?

Talvez por isso tantas pessoas concordam ou até mesmo se identificam com essa frase. O motivo? Ela é emblemática, isto é, ela representa, resume e exterioriza a realidade interna de muitas pessoas. Por isso, não quero falar aqui sobre o contexto de origem da frase, mas sobre os motivos que fizeram dela um slogan que muita gente vai vestir.

Como eu disse, tenho a impressão de que essa frase detém um poder de identificação sobretudo entre os que creem que há uma injustiça na oferta de carinho a quem é forte.

Geralmente quem compartilha desse sentimento tende a entender que a falta de carinho, atenção e cuidado das pessoas ao redor é uma consequência direta e inevitável do fato de elas serem fortes.

Considere os super-heróis. Eu não entendo muito do assunto, mas sei que eles têm uma característica em comum: serem praticamente indestrutíveis.

A maior fraqueza do super-herói consiste em ser alguém que é o mais forte. Todos o reconhecem como tal e todos lhe pedem ajuda. Ele é sempre ovacionado, mas as pessoas ao redor têm dificuldade de reconhecer as suas necessidades e suas debilidades. Seus inimigos gastam bastante tempo tentando descobrir seu calcanhar de Aquiles.

Por esse motivo, praticamente todos os super-heróis sofrem de uma certa solidão. Essa solidão parece uma espécie de ônus, um prejuízo inerente, um efeito colateral negativo inevitável a todos aqueles que são feitos de ferro.

Mas afinal, o que é ser forte? Em nossa cultura, ser forte é não precisar de ajuda (mas sempre estar apto a ajudar), é estar sempre alegre, nunca triste, é sempre ter coragem, nunca medo. É ser alguém que sempre passa por cima das próprias fragilidades, sempre se resolver sozinho, é ser alguém que sempre encontra todas as soluções dentro de si mesmo. “Ser forte” no nosso tempo parece sempre estar associado com uma solidão necessária, afinal, depender de outrem é abrir as portas do castelo, é vulnerabilidade, perigo.

Por isso, "ser forte", nesse sentido, não tem a ver com a qualidade real da matéria humana de um indivíduo, mas tem a ver com a maneira como ele se percebe e como ele se apresenta ao mundo, isto é, quer ser percebido pelos outros.

Existem muitos motivos pelos quais uma pessoa vai se tornando “forte” ao longo da vida, seria injusta a não observância de cada história. Cada pessoa “forte” sabe por que razões anda 24 horas de armadura, mesmo que essa armadura seja feita de uma simpatia inabalável, um sorriso inquebrável e um humor invariável.

Não me entenda mal, minha intenção não é patologizar personalidades, mas mostrar que alguns desses traços têm se tornado um ideal de homem que, no meu modo de ver, é insustentável.

Por isso, esse texto não é uma crítica a quem se identificou com a frase em questão, mas é uma crítica ao que tenta fazer dela um ideal. A minha experiência clínica me mostra que “ser forte”, nesses termos, não se adequa muito com a realidade da condição humana que é frágil por natureza. Não é muito saudável “ser forte”.

Meu incômodo com a frase reside em seu caráter ambivalente: ela nos faz crer que é impossível ser forte e receber ajuda ao mesmo tempo. É como se você tivesse de fazer uma escolha: Se você quiser ser forte na vida, se prepare para ser alguém solitário e desassistido de amor. Só recebe carinho quem precisa dele, isto é, os fracos. É assim que se convence a criança mais velha a aceitar que o irmãozinho caçula se tornou o centro das atenções. "Ele é menor, é fraquinho, precisa mais do que você, você já é um rapazinho".

Isso me lembra um pouco uma outra frase famosa que também vestiu muita gente: “Quanto mais inteligente é uma pessoa, menos sociável ela é” (Leandro Karnal). Não gosto desse tipo de lógica inversamente proporcional que trata como antípodas coisas que não são naturalmente contrárias. Se ao se tornar mais inteligente você se torna menos amigável e compreensível, isso não é ser inteligente, é ser ininteligível. Não adianta culpar os outros pela sua ininteligibilidade.

De igual modo, talvez você seja “forte” porque na verdade tem muito medo de baixar a guarda. Quanto mais uma pessoa é "forte", isto é, "dura", inatingível, cercada de muros, mais fraquezas ela está tentando esconder. Quem se vê “forte” não sabe ser de outra maneira porque a dureza tem uma função protetiva. Por esse motivo, o “forte” sempre quer ser mais forte ainda, mas como percebe que sua armadura lhe sufoca então começa a proferir esses lamentos heroicos que, apesar de lhe atolarem na condição de “in-auxiliável” e “in-socorrível”, pelo menos lhe vestem da honra do sacrifício. O “forte” arruma um jeito de romantizar aquilo que lhe é desumano. É daí que surgem declarações do tipo: "eu não recebo carinho porque sou forte..."

Quanto mais uma pessoa é dura, tanto menos ela se permite ser cuidada. Isso não significa que ela não tenha necessidade de cuidado, significa que ela não sabe receber carinho e cuidado. Ela desaprendeu isso, por motivos da vida. Por essa razão, tudo que menos deveríamos fazer é romantizar esse tipo de postura. Logo, o problema não se resume ao fato de as pessoas não darem a você o que você precisa, mas você precisa saber se você estaria apto a receber tais coisas. Nunca me esqueci de um cachorro que foi tão maltratado pelo antigo dono que ao chegar na casa da família que o adotou mordia qualquer um que lhe encostasse a mão para fazer um carinho.

Como psicólogo, boa parte do meu trabalho é demonstrar para as pessoas que pelo menos ali elas podem baixar a guarda, podem se render e podem assumir as próprias fraquezas. A clínica psicológica é um exercício da fraqueza, não por uma apologia da fraqueza, mas porque esse é o único caminho para ser verdadeiramente forte*.

Assumir a fraqueza não é transformá-la na sua identidade, assumir a fraqueza é reconhecer que você não é onipotente. Reconhecer a própria fraqueza é ter uma visão realista de si mesmo. Por outro lado, quem estaciona na própria fraqueza e faz dela seu lar é um perigo não apenas para si, mas para o mundo.

Faz parte do meu trabalho 'ensinar' às pessoas que há tempo para todas as coisas, tempo de ser forte, tempo de ser fraco. Tempo de estar armado, tempo de desarmar. Quando as pessoas se sentem seguras, a hostilidade vai dando lugar à simpatia, e o senso exacerbado de defesa vai desmoronando e deixando à vista do próprio paciente uma vulnerabilidade antiga que ele há muito tempo ansiava revelar. A pesada armadura é colocada de lado e de lá de dentro surge um corpo frágil escondido sob uma carapaça que endureceu com o tempo. É assim que as palavras vão reencontrando o caminho da boca, como uma fonte que há muito tempo estava obstruída. A torneira esquecida enferruja com o tempo. Como é dura de abrir! Mas logo que cede começa a verter uma água turva e barrenta que aos poucos vai se tornando límpida e transparente.

*“A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo. Por isso sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte.” 

2 Coríntios 12:9,10

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Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.