Vocação, Dom & Profissão

O velho Eli estava prestes a pegar no sono quando o jovem Samuel entrou em seu quarto. "Pois não! O senhor me chamou...", disse o jovem com os olhos sonolentos. Eli não fez caso da história e negou o chamado. Disse que já estava tarde e mandou o rapaz dormir. E lá se foi Samuel, porém não demorou a retornar: "O que o senhor quer? Por que me chamou?". O velho homem, já quase cego, irritou-se pela perturbação: "Já lhe disse que não chamei ninguém. Procure dormir que amanhã levantamos cedo".

O jovem não pôde compreender, mas obedeceu sem discutir. Não obstante, meia hora depois, lá estava o pobre Samuel a bater, dessa vez timidamente, na porta de Eli. "Eli, me perdoe, não consigo dormir. Sempre que deito e fecho meus olhos, ouço alguém me chamar: "Samuel, Samuel!" ". O velho respirou fundo, teve compaixão da criança. Olhou para o teto e então se preocupou com o menino. Depois de ter pensado rapidamente, respondeu com um tom de quem já sabia o que fazer: "Venha meu filho, não tenha medo. Hoje você pode dormir aqui perto de mim. Prometo que amanhã mesmo te levarei a um psiquiatra". Eis aí a releitura moderna do chamado do profeta Samuel**.

Por que tem sido cada vez mais difícil para as pessoas escolherem um caminho profissional?

Muita gente desconhece ou ignora a natureza religiosa da etimologia da palavra vocação. Vocatio, do latim, significa chamado. A ideia básica é a de que você escolhe uma profissão porque foi escolhido para ela. Logo, quem é chamado não está a serviço de si mesmo, mas a serviço daquele que o chamou. Isso significa que a suas aptidões, dons e inclinações profissionais não são por acaso ou aleatórias. Elas têm um destino e um sentido determinado.

É impossível ignorar que cada um de nós nasce e já dispõe de tais coisas como que concedidas sem mérito algum, sem estudo ou sem treino prévio. O nome disso é dom, ou seja, um presente, aquilo que foi dado de graça, não conquistado ou criado. Cada dom é dado segundo sua prévia vocação. De maneira que tanto o dom quanto a vocação não provém do próprio homem.

Se o chamado, por sua vez, não é produzido pelo homem, então ocorre, de o mesmo provir de fora para dentro e não o inverso. Mas em um mundo sem Deus, não há o lá fora. O mundo moderno dispõe no máximo de uma espiritualidade feita nas coxas, nas coxas de uma transcendência sufocada pelo imanente.

O existencialismo ateu, o qual é a base de nossa cultural secular, nos ensinou que não não há ninguém chamando você lá fora. Que não há essência que preceda a existência. E que se você ouve um chamado é porque sua mente esquizofrênica produziu tal coisa. Enfim, vivemos sob a égide de que cada um é projeto de si mesmo e que cada um é o criador de si mesmo.

Como então falar de vocação? Como as pessoas ouvirão o chamado se não há quem as chame? Em uma sociedade onde "Deus está morto" (para muitos), não há espaço para a ideia de vocação em seu sentido original. Especialmente, os jovens e adolescentes estão trancafiados em "câmaras de eco" compelidos a secretarem de si mesmos um caminho profissional que seja conveniente a si mesmos, aos pais ou ao mercado e só.

É de cortar o coração vê-los cotidianamente se torcendo e contorcendo para verter qualquer coisa parecida com um encontro pleno consigo mesmos. Querem desesperadamente se descobrir! Querem poder ouvir alguém dizer: "Vem!". Mas eles foram ensinados que não há nada para ouvir lá fora.

Eles mesmos têm de fabricar um chamado para si mesmos, tudo isso "ouvindo apenas a voz do próprio coração". Como dói vê-los se culpando por simplesmente não conseguirem fabricar o tal do próprio chamado. Eles não conseguem ouvir porque o silêncio é ensurdecedor. Porventura não há quem lhes chame? Ou seus ouvidos foram tapados? Em uma sociedade sem Deus a descoberta da vocação se dá por monólogos esquizofrênicos.

Quem chamou você?


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**Leia a história real de Eli e Samuel, no livro Bíblico de 1 Samuel, cap. 3.


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Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.